Sociedade anônima do futebol e integridade desportiva (Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD).
A atenção estatal e certa interferência na gestão corporativa das entidades de prática desportiva, especialmente, no âmbito do futebol, não é novidade. Diferentes diplomas legais, tais como, a Lei do PROFUT (Lei nº 13.155/15) e as Leis de Incentivo ao Esporte (i.e. Lei nº 11.438/06), trazem requisitos no sentido de garantir a manutenção do controle e ordem desportiva dentro das entidades, estabelecendo critérios de governança e transparência, além de preconizar condutas éticas básicas e punições em caso de descumprimento.
A melhora e profissionalização do esporte não se faz apenas com pessoas, mas sim, com um sistema bem estruturado, bem ordenado e administrado, que se preocupa com a integridade esportiva e os demais princípios legais e regulamentares aplicados ao esporte, como aqueles encontrados na Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) e Estatutos das entidades de administração e prática do desporto.
Nesta linha, mais recentemente foi publicada a Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol, estabelecendo normas de governança e transparência das instituições futebolísticas, que poderão revolucionar a forma de gestão do desporto brasileiro.
A nova dinâmica proposta por meio da recente norma, que prevê comandos concretos com relação à governança das entidades, permite a abertura de capital e a emissão de títulos mobiliários (as denominadas debêntures-fut), e irá, de maneira insofismável, atrair novos investimentos às agremiações brasileiras que desejarem aderir ao modelo[3].
Estamos falando de uma nova formação da estrutura societária específica para o futebol, a qual possibilita a participação de pessoas físicas e jurídicas nas entidades de prática desportiva futebolísticas, na condição de acionistas. Desta forma, é claro e evidente que esta mudança demanda portanto, cuidados no tocante à integridade, a fim de se evitar indevida interferência externa na imprevisibilidade desportiva.
Em que pese a manipulação de resultados seja, corriqueiramente, relacionada ao pagamento/recebimento de vantagem indevida a fim de se falsear o resultado de uma partida, ela pode estar desassociada de ganhos financeiros, por exemplo, quando um clube deliberadamente perde uma partida a fim de selecionar o seu próximo oponente, ou quando um stakeholder é coagido a atuar de determinada forma sob ameaça de sofrer mal injusto e grave, por exemplo, perder o trabalho ou, até mesmo, sofrer violência física.
Assim sendo, o legislador, na construção do PL 5.516/2019, que deu origem à Lei nº 14.193/2021, teve relevante preocupação quanto às alterações na incerteza desportiva, que ferem de morte a integridade do desporto e o esporte em si.
Uma delas pode ser vista no art. 4º do diploma legal, o qual estabelece expressamente que o acionista controlador de uma Sociedade Anônima do Futebol não poderá, direta ou indiretamente, ser acionista ou participar de outra SAF, o que faz total sentido, vez que o deverá estar de acordo com seus interesses em participar de uma entidade específica.
Ademais, no parágrafo único do referido dispositivo, expressamente determinou-se que o acionista que detiver 10% (dez por cento) ou mais do capital votante ou total da Sociedade Anônima do Futebol, ainda que não a controle, se participar do capital social de outra Sociedade Anônima do Futebol, não poderá participar direta ou indiretamente da administração de outra companhia ou terá direito a voz e a voto nas assembleias gerais.
Além disso, o legislador cuidou de assegurar, no art. 6º, que a pessoa jurídica detentora de participação igual ou superior a 5% (cinco por cento) do capital social da Sociedade Anônima do Futebol informe à própria Companhia e à Confederação Brasileira de Futebol, o “nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a beneficiária final”. Aqui, vemos a preocupação do legislador em identificar quem são as pessoas que participarão do novo modelo de negócio atrelado ao futebol, de forma a manter sob sua custódia e controle em caso de eventuais transtornos ou irregularidade.
Analogamente, vimos este movimento quando do cadastro dos agentes e novos intermediários perante a FIFA e à CBF, assim como, na necessidade dos clubes em transmitirem e registrarem seus contratos firmados junto a atletas e terceiros que de alguma forma receberiam valores provenientes da atividade esportiva, especialmente transferências onerosas.
Além desse exemplo, também temos a preocupação das polícias especializadas em crimes financeiros, manipulação de resultados e empresas que trabalham no ramo das casas de apostas, que buscam sempre identificar o apostador.
Neste sentido, o descumprimento das normas pontuadas na Lei nº 14.193/2021 sujeitará a(s) pessoa(s) à penalidade de suspensão dos direitos políticos da pessoa jurídica acionista, bem como à “retenção dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra forma de remuneração declarados, até o cumprimento desse dever”.
O comando previsto no art. 6º, relacionado à transparência da SAF, é relevante não apenas para assegurar o efetivo cumprimento do quanto estabelecido no art. 4º, evitando-se que indiretamente um mesmo controlador ou beneficiário final participe de diferentes Companhias, assim, resguardando-se a imprevisibilidade do desporto, mas também é valoroso no tocante à prevenção à lavagem de capitais. Isso porque possibilita, efetivamente, que se rastreie a origem dos valores circulantes, atendendo às mais importantes recomendações anti-money laundering.
Neste ponto, aliás, há de se salientar que o legislador previu “parágrafo único”, que estabelecia que a instituição administradora de fundo de investimento informasse à Sociedade Anônima do Futebol o nome dos cotistas titulares de cotas correspondentes a 10% (dez por cento) ou mais do patrimônio. A medida, que resguardaria, ainda mais, a transparência e a integridade desportiva, foi, contudo, objeto de veto presidencial, o qual foi mantido pelo Congresso Nacional.
Ainda no que se refere à transparência da Sociedade Anônima do Futebol, previu-se no texto legislativo (art. 8º) a necessidade de a entidade manter em seu website: o estatuto social e as atas das assembleias gerais; a composição e a biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria; e o relatório da administração sobre os negócios sociais, incluído o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, e os principais fatos administrativos. Tais informações deverão ser atualizadas mensalmente, sob pena de os administradores da Companhia responderem pessoalmente pela inobservância do apontado dever.
Havia sido aprovada, inicialmente, além das indicadas nos incisos do art. 8º, a obrigatoriedade de se fazer constar do sítio eletrônico da SAF, o nome, a quantidade de ações e o percentual no capital detidos por cada acionista da companhia[6].
Com a devida vênia ao entendimento do Executivo, corroborado na manutenção do veto pelo Legislativo, tratava-se de importante medida de transparência que possibilitaria a melhor identificação dos investidores pelo torcedor (e pela própria sociedade), de maneira a também resguardar a integridade desportiva.
É tarefa hercúlea se desvendar cada um dos contextos em que a manipulação de resultados surge, dada à sua complexidade e às multicamadas em que está inserida. No entanto, é imprescindível que se descubra o maior número possível de causas e de vulnerabilidades que permitem que ela ocorra, buscando-se medidas que as evitem. Apenas dessa forma será possível a preservação da imprevisibilidade desportiva e, consequentemente, da credibilidade do desporto nacional.
Notadamente, as possibilidades trazidas por meio da Lei nº 14.193/2021 intensificam, ainda mais, o potencial que o futebol brasileiro tem de movimentar e fomentar a economia nacional, com a chegada de novos investimentos e novos investidores. Com novas possibilidades, surge, pois, a necessidade de se instituírem novos cuidados, os quais, efetivamente, foram implementados pelo texto legal – diga-se, a despeito dos indesejados vetos.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) Autor(a) deste texto.
[1] Advogado. Professor da Disciplina de Direito Desportivo do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor da cadeira de Direito Desportivo no Curso de Gestão para Profissionais do Esporte da FGV/SP, Universidade São Marcos e Marketing Champion da ESPM. Ex Vice-Presidente de Comunicação e Marketing do São Paulo Futebol Clube. Co-autor dos Livros Futebol, Mercado e Estado e Sociedade Anônima do Futebol. Auditor e Vice-Presidente do TJD do Basquete entre 2008 e 2019.
[2] Advogada. Pós-Graduada em Direito Penal Econômico e Direitos Fundamentais. Especialista em Compliance. Coordenadora Regional – São Paulo e Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol – São Paulo.
[3] MANSSUR, José Francisco. Controle da SAF e a real e verdadeira autonomia das entidades esportivas. Disponível <https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/346517/controle-da-saf-e-a-real-autonomia-das-entidades-esportivas>
[4] KAISER, Sebastian. Match-fixing and manipulation in sport. In FRAWLEY, Stephen. Critical Issues in Global Sport Management. New York: Routledge, 2017, p. 65.
[5] DELBIN, Gustavo N.; CHAMELETTE, Mariana. Manipulação de Resultados e sua Previsão Normativa. Coluna JusDesportiva do IBDD publicada em 14 de outubro de 2020. Disponível em: https://ibdd.com.br/manipulacao-de-resultados-e-sua-previsao-normativa/.
[6] Veja-se o texto: I – informações sobre sua composição acionária, com indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual detido por cada acionista, inclusive, no caso de pessoas jurídicas, dos seus beneficiários finais, nos termos do art. 6º desta Lei
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