Sociedade anônima do futebol: uma nova oportunidade para os clubes brasileiros
A verdadeira complexidade e as minúcias de administrar um negócio ou empreendimento é imperceptível para aqueles que não integram o meio empresarial. No esporte mais popular do planeta, não é diferente. A visão da arquibancada, em linhas gerais, restringe-se à partida e aos atletas e o protesto pelo mau resultado pode desconhecer os fatores que compõem a gestão de um clube de futebol.
Contudo, os torcedores também vêm demonstrando, paulatinamente, interesse na administração e gestão das agremiações, a partir da aquisição da consciência de que a herança deixada por seus gestores é perene e duradoura, independentemente de se tratar de legado positivo ou negativo.
Moresco e Silva (2016) entendem que a estrutura administrativa dos clubes de futebol [1], de forma geral, apresenta-se de modo simples, sem profissionalização, em que a concentração do poder e a tomada de decisões possuem repercussão pelo modelo de mercado adotado.
Recentemente, partindo da constatação de grande evolução da sociedade e do esporte, podemos perceber que os clubes de futebol têm adotado medidas para maior profissionalização de sua gestão, tanto pela utilização de novas ferramentas e estratégias quanto pelo investimento de recursos financeiros que resultem em conquistas desportivas e na diversificação de suas fontes de receita.
Nesse cenário, o Estado não se mostrou alheio aos passos tomados pelas entidades de prática desportiva. Tal preocupação pode ser verificada nos requisitos impostos em diferentes diplomas legais, tais como a Lei Federal nº 13.155 de 2015, conhecida como Profut, bem como a Lei Federal nº 11.438 de 2006, também denominada Lei de Incentivo ao Esporte (LIE).
Assim, indaga-se: a sociedade anônima do futebol, ou simplesmente SAF, é uma nova oportunidade de estruturação para os clubes brasileiros? Segura e indubitavelmente a resposta é, sim, mormente em razão do conteúdo examinado pelo Poder Legislativo, qual seja, o Projeto de Lei nº 5.516, de 2019, que cria o Sistema do Futebol Brasileiro [2].
O projeto, cuja publicação no Diário Oficial da União foi efetivada no dia 9 de agosto deste ano, deu origem à Lei Federal nº 14.193 de 2021 [3]. Ela tipifica a sociedade anônima do futebol em um contexto que estabelece, ainda, normas de governança, controle e transparência, além da instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e previsão de um sistema tributário específico. Cabe ressaltar que o texto legislativo altera e complementa as disposições da Lei Federal nº 9.615 de 1998, popularmente conhecida como Lei Pelé, bem como do Código Civil, conforme demonstrado ao longo deste artigo.
As disposições introdutórias da Lei federal nº 14.193, como o próprio nome diz, referem-se ao ponto de partida do texto legal. A partir delas, conceitos e definições importantes podem ser observados, em especial aqueles relativos à SAF: “Artigo 1º — Constitui Sociedade Anônima do Futebol a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional, sujeita às regras específicas desta lei e, subsidiariamente, às disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998”.
Em seguida, a constituição da SAF é estabelecida e detalhada em dois artigos, sendo certo que ela poderá se dar: 1) pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; 2) pelo desmembramento do departamento de futebol ou pessoa jurídica original com transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; ou 3) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
Nota-se que o legislador se preocupou em buscar medidas no projeto que evitassem o aperfeiçoamento de fraudes, como por exemplo a disposição contida no artigo 2º, §1º, I: “Nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste artigo: I — a Sociedade Anônima do Futebol sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol (…)”.
Vale ressaltar que a obtenção de bons resultados, tantos desportivos quanto financeiros, está intrinsecamente ligada à gestão da entidade, com base em seus atos e medidas. Nesse contexto, a Lei federal nº 14.193 traz disposições importantes acerca da governança da SAF, estabelecendo regras de controle e participação acionária, existência de órgãos de fiscalização e deliberação, bem como obrigações de transparência.
As mencionadas questões envolvendo transparência e governança relacionam-se também com os preceitos da seção IV do capítulo I, a qual estabelece as obrigações da SAF. A partir dela pode-se constatar que a SAF não será responsável pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica que a deu origem, com exceção das atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações que lhe forem conferidas.
Ademais, resta evidente ser o clube ou pessoa jurídica original responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da SAF, sendo que os administradores dela respondem pessoal e solidariamente pelas obrigações por repasses financeiros do mesmo modo que o presidente do clube ou os sócios administradores da pessoa jurídica original, podem responder pelo pagamento aos credores de valores que forem transferidos pela SAF.
O capítulo I detalha também o modo de quitação das obrigações do clube ou pessoa jurídica original, que poderá efetuar o pagamento das obrigações de forma direta aos seus credores, ou de acordo com sua adequação e conveniência pelo concurso de credores ou por meio de recuperação judicial ou extrajudicial.
Cumpre destacar que o regime das execuções concentradas, algo ainda pouco debatido e explorado no universo no futebol, foi instituído na Lei nº 14.193. Estabelece o artigo 15 que o Poder Judiciário disciplinará o regime centralizado de execuções, por meio de ato próprio dos seus tribunais, em que será garantido o prazo de seis anos para pagamento dos credores, podendo este prazo ser estendido por mais quatro anos, se o clube ou pessoa jurídica original comprovar a adimplência de ao menos 60% do seu passivo original ao final do prazo inicial de seis anos.
Outro avanço importante garantido pelo legislador foi a definição das diretrizes do financiamento da SAF, possibilitando a ela a emissão de debêntures com remuneração por taxa de juros específica, pagamento periódico de rendimentos e demais características. Vale dizer que o texto legal permite a emissão de qualquer outro título ou valor mobiliário desde que observadas as exigências legais inerentes.
Há de se ressaltar uma grande fonte de recursos a ser explorada pela SAF. A captação de montantes incentivados em todas as esferas de governo, em especial da Lei de Incentivo ao Esporte, pode ser utilizada para adimplemento de natureza trabalhista de entidades detentoras de receita bruta anual limitada a R$ 78 milhões. Essa previsão possibilita novas captações e gera maior circulação de valores para o desenvolvimento do esporte.
Pequena digressão se faz necessária neste momento para falar da obrigação de a SAF instituir o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE).
A partir da celebração de convênio com instituição pública de ensino, a SAF deverá incentivar a promoção de medidas em prol do desenvolvimento da educação com envolvimento direto do futebol. Isso vai, por exemplo, desde a reforma ou construção de escola pública até a capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol para conduzir atividades relacionadas ao convênio firmado.
De suma importância mencionar que o artigo 29 da Lei Federal nº 14.193 inclui deveres e obrigações adicionais à SAF no que tange à formação de atletas. Isso porque, além do quanto previsto pela Lei Pelé, estabelece o texto legal que a SAF deverá proporcionar ao atleta em formação, que morar em alojamento por ela administrado, instalações físicas certificadas, assistência de monitor responsável, convivência familiar, participação em atividades culturais e de lazer e assistência religiosa para aqueles que desejarem.
Mesmo considerando todas as inovações, propostas e ideias trazidas pelo legislador conforme acima exposto, algo muito esperado pelos clubes de futebol e seus dirigentes ainda faltava: um Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF). Referido regime implica no recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, de tributos como o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), por exemplo, a serem apurados seguindo o regime de caixa.
Nos primeiros cinco anos da constituição da SAF, ela está sujeita ao pagamento mensal e unificado dos tributos previstos no rol do §1º do artigo 31, à alíquota de 5% das receitas mensais recebidas. Por outro lado, a partir do sexto ano de sua constituição, o TEF incidirá à alíquota de 4% da receita mensal recebida, compreendendo os ditos tributos, inclusive os valores oriundos da cessão dos direitos desportivos dos atletas.
Definitivamente, a SAF pode significar um novo caminho de organização, promoção e funcionamento dos clubes de futebol no Brasil. No século 21, em particular, significativa transformação na indústria de futebol ao redor do planeta pôde ser vivenciada, em que, nos grandes centros desse esporte, muitos clubes passaram a ser geridos com competência técnica aprimorada, composta pela adoção de melhores práticas observadas no mundo corporativo, em especial na Europa.
Esse mesmo contexto, aliado às suas peculiaridades, pode ser de grande valia para os clubes, que podem tornar a SAF uma grande oportunidade de estrutura societária segura, estável e robusta para o exercício de suas atividades, aproximando o que o futebol brasileiro tem de melhor ao que as boas práticas apresentadas pelo mundo têm nos ensinado por meio de seus resultados de sucesso.
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[1] Moresco, E.; Silva, R. (2016). Avaliação da governança corporativa nos clubes de futebol profissional da série “A” do Campeonato Brasileiro de 2015, classificados até a 8ª colocação. Revista Gestão Premium. 5(1). [2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0svsnv4hgr35r1bkpzorwm6fkp14157848.node0?codteor=2028194&filename=PL+5516/2019. [3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm.
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